Advogada Mariza Iracet relata os dramas e batalhas durante e após a enchente de 2024 em Novo Esteio
O site Eu amo Esteio conversou com a advogada e liderança comunitária do bairro Novo Esteio Mariza Aparecida Chuma Iracet, de 63 anos, sobre os efeitos da enchente de 24 na região. Ela, que mora há 25 anos no bairro, também fez um panorama sobre sua trajetória de vida. Mariza é pós-graduada em Direito de família contemporânea e mediação de conflitos, facilitadora de Círculos de Paz da Justiça Restaurativa, especialista em violência contra a mulher. Palestrante, coordenadora-geral da ONG Coletivo Feminino Plural, presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/Esteio. É coordenadora da Comissão dos Moradores do Bairro Novo Esteio.

SITE – Vamos começar com um panorama sobre a sua vida, sua trajetória desde a infância até a formação em Direito. Como era o ambiente familiar, estudantil, profissional do início até a senhora consolidar a sua carreira advocatícia?
MARIZA – Eu nasci em Rosário do Sul. A minha mãe era técnica de enfermagem, mas também trabalhou em casa de família, e o meu pai era mecânico. Muito cedo meus pais se separaram, eu tinha 3 anos. Aos 4 anos comecei a cuidar de um irmão, que era bebê, quando a minha mãe foi trabalhar. Meus pais tiveram quatro filhos juntos. De outras relações do pai tive mais oito irmãos. Um dos meus avôs era filho de escravo, tinha costumes rígidos. Morei ainda em Porto Alegre por alguns anos.
Amo todos os meus irmãos e a vida me ensinou que desde cedo eu tinha que defendê-los, cuidá-los e me cuidar também, brigar pelos meus direitos.
Feminista desde o nascimento – Eu acho que e a gente sempre tem que buscar o diálogo, tem que colocar as situações que não estão nos agradando e brigar por elas. Quando pequena eu apanhava da minha mãe porque o meu irmão podia jogar futebol e ler gibi enquanto eu tinha que fazer o serviço da casa. Eu não aceitava esta situação, reclamava, acho que eu já nasci feminista. E sempre estudei muito.

Buscando a justiça desde pequena – Meu padrasto, Nestor Batista, já falecido, teve uma influência muito grande na minha vida, ele era mais de conversar, de dialogar, de explicar, e foi dessa forma que eu fui me desenvolvendo. Sempre busquei pela justiça, se eu via duas crianças brigando eu ia lá e queria entender o motivo de estarem discutindo e por que não poderiam conversar e tentar resolver o atrito.
Em 1977 viemos morar em Esteio pela primeira vez, no bairro Novo Esteio, e naquele ano meu padrasto faleceu. Com 14, 15 anos, precisei trabalhar porque minha mãe enfrentava problemas de saúde. Meu primeiro emprego foi no Clube Aliança.
Casei com 19 anos e aos 20 tive minha primeira filha. Fiquei casada por 12 anos, tenho duas filhas desse casamento. Casei e fui morar em Porto Alegre, onde fiquei por 20 anos até voltar para o bairro Novo Esteio onde resido há 25 anos.
Amizades permanentes – Eu tenho muito carinho pelo bairro porque há pessoas que eu conheci lá em 1977 e ainda moram aqui. Esse bairro tem um diferencial, amigos desde aquela época, pessoas que com a enchente de 2024 eu me solidarizo como grandes amigos, alguns até como irmãos.
Rafuagi – Em um período trabalhei como corretora de imóveis. Eu tive vários empreendimentos, fábrica de alimentos. Tive loja na frente do colégio Bernardo, onde conheci o na época adolescente “Rafa Rafuagi”. Logo pensei: “Esse menino tem uma cabeça muito boa, ele vai ter um futuro brilhante.” E assim ocorreu. Sempre me relacionei muito com adolescentes, jovens, mas também com idosos, sempre nessa mistura.
SITE – E quando entraste na faculdade e começaste a carreira no Direito?
MARIZA – Em 2004 eu havia passado por uma cirurgia, estava acamada, e uma filha viu na internet sobre o vestibular da Ulbra e me inscreveu. Todo mundo sempre dizia: Tu sempre lutas pelo direito dos outros, tens que fazer faculdade de Direito”. E passei de primeira, fiquei dois anos na Ulbra e me transferi
Depois comecei a trabalhar com mediação de conflitos, me inteirar sobre a violência, lei Maria da Penha. Em 2008 fiz meu primeiro trabalho com violência doméstica numa escola e trabalhei com mediação. Formei-me em 2010 e fui atuando sempre voltada para o social. Trabalhei nos projetos Territórios da paz, me tornei especialista em tema de violência doméstica, sou facilitadora de círculos de paz, coloquei jovens que estavam na violência no mercado de trabalho, trabalhei com regularização fundiária, Mulheres da Paz, agentes comunitários, justiça comunitária. Prestei assessoria jurídica para as mulheres em situação de violência, atendi mais de seis mil mulheres vítimas de violência. Também faço parte do Coletivo Feminino Liberal, uma ONG feminista da qual eu sou a coordenadora geral.
SITE- Como é sua atuação?
Atuo no Coletivo Feminino Plural, faço oficinas de Direito para a Casa Rosa Mães da Periferia há uns dois anos, sou liderança comunitária aqui no bairro Novo Esteio desde 2012. Em 2016 formei uma comissão muito próxima dessa que hoje nós estamos para enfrentamento às enchentes.
SITE – E como está o desenvolvimento das reivindicações do combate às enchentes? Como foi aquele período da grande cheia em 2024?
MARIZA – Tivemos chuvas intensas em uma semana. No dia 2 de maio eu até fui jantar na casa da minha irmã e nós vimos que estava avançando a água, mas não com muito volume.

No dia 28 de setembro de 24, a Dra. Mariza Iracet, cocoordenadora do Coletivo Feminino Plural, realizou uma capacitação para psicólogas, nutricionistas, psiquiatras e psicopedagogas, profissionais que trabalham na Clínica Café, localizada na cidade de Esteio. O tema da capacitação foi a violência doméstica, destacando a relevância de treinar os profissionais de saúde para identificar e intervir de maneira eficaz diante dessa questão social crítica na vida das mulheres vítimas de violência. Publicação Coletivo Feminino Plural.
No dia 3 pela manhã minha irmã me ligou perguntando se poderia deixar o carro na minha casa, pois estava entrando água no pátio dela. Quando eu abri o portão para ver se ela estava vindo a água entrou. As pessoas na rua passavam desesperadas com roupas e lençóis. Foi tudo muito rápido. Meu marido chegou a pensar que era só uma chuvinha: “Tu não viste nas redes sociais do prefeito dizendo que essa chuva não vai dar nada?”.
Aí entrou minha sobrinha, falando: “Vamos embora, vocês vão morrer aí se ficarem”. Saímos com as roupas do corpo, os remédios de meu esposo e nossos cachorros. Quando saímos aqui de casa eu já estava com a água na cintura. Foi um desespero, algo que eu nunca imaginei passar. Foi muito triste ver as pessoas todas correndo em fuga tentando sair. Fiquei 40 dias na casa da minha filha.
Falta de informação – Houve ainda a falta de aviso das autoridades sobre a situação, o que foi muito prejudicial para todos. Faltou um alerta na noite anterior para sairmos e retirarmos os pertences das residências. Vizinhos que tinham barco se colocaram para ajudar as pessoas. Meu irmão foi para um abrigo com os cachorros. Ele, que tem síndrome do pânico, entrou em desespero.
Três semanas com a casa invadida pelas águas – Ficamos 20 dias com água dentro da nossa casa. A minha residência teve dois metros de água em determinados lugares. Quando voltamos estavam os móveis, a churrasqueira, tudo quebrado. A piscina até hoje não consegui mandar arrumar.

Imagens perdidas – Perdi fotos muito importantes da mãe, do pai, avós, da minha trajetória, histórias que nunca mais conseguirei retomar por essas imagens. Poucas sobraram. As fotos das minhas filhas ficaram todas manchadas. Álbuns destruídos, memórias da minha história de vida que não tenho mais para ver.

SITE – Como a senhora se sente ao saber sobre a previsão de novas chuvas? Ansiedade, pânico?
MARIZA – Durmo muito pouco desde a enchente de 24. Adorava dormir com o barulho da chuva, mas hoje para mim isto significa pânico, ter de passar por tudo de novo.
Até mais que o desabar material houve um desabar emocional, psicológico de todos. E não tivemos este acompanhamento terapêutico, disponibilidade da prefeitura para ter mais profissionais e atendimentos.
Traumas, o antes e depois da enchente –
As nossas vidas têm um antes e um após a enchente. E aí muitas vezes eu escuto assim: “Ah, mas vocês têm que valorizar que estão vivos”… Sim, eu valorizo estar viva, as pessoas também valorizam que não perderam a vida. Porém, que conceito de vida é este? A gente quer uma vida digna, tranquila, a gente merece, eu tenho 63 anos, trabalho desde os meus 14, 15 anos, o meu marido tem 81 e trabalha desde os 12 anos. Uma coisa é teres 20 anos e sonhos para construir, outra é já estar aposentado, querer descansar, já construiu a vida, mas ter que recomeçar quase do zero. E as pessoas aqui não estão mais descansando. Todos tiveram perdas significativas, há casas ainda que não conseguiram arrumar.
Eu adoeci vendo a sujeira, sentindo o cheiro, as paredes mofadas. Eu já pintei quatro vezes a minha sala e ainda tem manchas da enchente.

Falta de apoio – É triste saber que nós pagamos impostos e quando questionamos se há como isentar os moradores que sofreram enchente do IPTU a prefeitura responde que não, pois não pode abrir mão de receita… Má vontade política. É de indignar. Então vamos batalhar, organizar uma associação para poder trabalhar com as questões todas que o bairro vem sofrendo ainda, porque o nosso sofrimento não parou. Questões básicas como hidrojateamento em todas as ruas, o que não vem sido feito. Se não for feito o serviço integrado por todo o bairro vai chover aqui e vai alagar porque está entupido em algum lugar.
Em janeiro deste ano tivemos uma chuva que não foi muito forte, eu nem estava em casa e o meu vizinho me ligou dizendo que havia água no meu portão…
Não dá para esperar. Nós não temos mais tempo para esperar. Pessoas adoecem, morrem por estes problemas. Na enchente do ano passado um vizinho enfartou ao sair de casa. Outro foi salvar os animais e teve um infarto na passarela perto daqui.

Seguir na luta – E eu vou continuar, e a minha comissão vai continuar avançando até nós termos as respostas e projetos, obras executadas. A gente quer dormir tranquilo e não tem mais tempo para esperar. E hoje eu vim falar contigo de preto porque eu me vejo de luto pelas perdas que tivemos, pelas histórias de vida. E pelo luto de ver que a sociedade que nós estamos vivendo hoje está precisando de tantas coisas e não estão tendo olhar por elas. Por nós. Vamos seguir na luta.

