Casa de Odete Diogo abrigou início dos movimentos negro e hip hop de Esteio
A enchente de maio de 2024 que devastou o Rio Grande do Sul deixou um saldo trágico de mortes, traumas, perdas, medos. Além de terem perdido as residências e bens materiais, milhares de famílias viram suas mentes tomadas pela ansiedade, depressão, insegurança, receio de que aconteça uma nova tragédia dessa magnitude.
Esteio também foi fortemente atingida e um dos pontos tomados pelas águas foi a casa que deu início aos movimentos negro e hip hop na cidade. Contaremos a seguir um pouco sobre este lar e sua moradora, Odete Diogo.
A secretária aposentada Maria Odete Diogo dos Santos, 59 anos, moradora da rua Bartolomeu de Gusmão, no bairro Novo Esteio, teve a casa completamente alagada e perdeu quase todos os itens materiais, mas não esmoreceu. Ativista das causas sociais, da raça negra, da cultura, da arte, com determinação, resiliência, esforço foi se reerguendo além de ter auxiliado dezenas de pessoas próximas atingidas. A mulher batalhadora que atuou durante vários anos em sindicatos segue em frente.
Odete Diogo, como é mais conhecida, nasceu em Camaquã (RS) e reside em Esteio desde fevereiro de 1988. É mãe do rapper e fundador da Casa do Hip Hop de Esteio e do Museu da Cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul Rafael Diogo dos Santos, o “Rafa”, do grupo Rafuagi, e da socióloga e produtora cultural Natália Diogo dos Santos. Tem dois netos, Augusto e Malik. O marido, o desenhista estrutural e arquitetônico, Juarez Antônio dos Santos, muito atuante no bairro, especialmente na área esportiva, artística e cultural, faleceu em 2022. Tem ainda como presença no lar os “cãopanheiros” Bob, de 15 anos, e Marley, com 11. No final de abril deste ano Odete concedeu em sua residência entrevista ao site Eu Amo Esteio narrando o enfrentamento daquele período de enchente e outras histórias de sua trajetória. Ela começou narrando os primeiros dias de cheia:

– A tragédia para nós começou no dia 3 de maio de 2024, foi o dia D, o dia da enchente como um todo. Aqui em casa a água ultrapassou um metro, chegou à altura da janela.
Naquela data, os meus filhos Rafa e Natália vieram me buscar por volta das 11h30min da manhã. Eu já estava doente, acamada, nem havia visto a enchente vir tomando conta. A Natália foi logo dizendo: “Mãe, tu tens que sair agora de casa”. Então levantei, calcei umas pantufas, eles me segurando. A água já se elevava na calçada e no pátio e eu chorava querendo os bicos do meu cachorro Marley, que ainda chupa bico…
Quando chegou a noite e não melhorei, o Rafa me levou no hospital da Unimed em São Leopoldo. Lembro de ele me colocar em uma cadeira de rodas e gritar: “A mãe está tendo um AVC”. Isto porque eu estava delirando, falando bobagens.

Lá fizeram uma tomografia e constataram não ser o caso. Logo fizeram outros exames e detectaram que eu estava com dengue, e daquelas bem fortes. Senti sintomas graves, fiquei muito mal, ainda mais que sofro de insuficiência cardíaca, tenho marca-passo. Mas hoje, avaliando a situação, sou grata por ter tido dengue naquela época porque se eu estivesse em sã consciência não sei o que teria acontecido, poderia ter sido pior já que ficaria muito nervosa e tenho sérios problemas cardíacos.
Cenário de guerra
Voltei para ver como estava minha casa em 12 de maio, Dia das Mães. Almocei na residência da sogra do Rafa e vim para cá com meus filhos e a família da minha nora. O cenário era desolador, de destruição total. A água deve ter chegado até 1,20 m.

As lajotas na entrada estavam quebradas, os muros laterais caíram, a geladeira e móveis sujos e fora do lugar. Entre as perdas tinha um sofá de três lugares de meu casamento em 1986, mantinha tudo muito bem conservado. Atônita, não conseguia nem chorar. Pareciam rescaldos de uma guerra.
Quando vi toda a perda pensei que não conseguiria me reestruturar, sou viúva, aposentada por invalidez, seria difícil, estou perto dos 60 anos. Lembrei de tudo que eu e meu marido conquistamos, a ajuda dos filhos para uma velhice mais tranquila, mas de repente minha casa estava vazia.
Na hora não chorei, mas à noite na casa do meu filho eu desabei e chorei muito abraçada nele. Ele dizia: “Mãe, eu vou te ajudar, tu vais recuperar a casa”. Mas não eram só as coisas materiais, a cadeira, a mesa, a cama, o sofá, era o que representavam. Foi o trabalho de uma vida.
Casa do hip hop e do movimento negro
Esta casa sempre foi um ponto assim de quilombo. A primeira casa do hip hop foi aqui. Na cozinha e nos fundos a gente fazia oficinas e reuniões que resultaram na fundação da Associação do Hip-Hop de Esteio. Foi aqui que tudo começou.




Um espaço de resistência e de arte, com certeza.
Movimento negro
A estruturação do movimento negro de Esteio surgiu aqui também. O Grupo Unir Raças – Associação Unificar Etnias, Construir Igualdade Racial e Social, fundado em 10 de janeiro de 2007, começou aqui. Fazíamos eventos de formação e debates, assistíamos filmes com os integrantes iniciais: a família Franco, o Osmar, que foi o nosso primeiro presidente, a Sani Figueiredo, a “Tita”, o professor Paulo Sérgio, entre outros. Era formado por pessoas negras e de outras raças. Desde 2012 estou na presidência do grupo.








Mas quando vi aquela destruição da enchente eu pensei: As coisas podem ter ido, mas o quilombo ainda está aí. O lar não se foi e vamos nos reerguer.
Ajuda
Devo ser sou uma das poucas pessoas e famílias que, de fato, conseguiram se reerguer. As coisas materiais eu já adquiri com a ajuda de amigos e familiares.
Um sobrinho me disse: “Estou te retribuindo o que tu me fizeste lá na juventude, quando eu vim do interior para estudar”. E hoje ele é engenheiro. É gratificante porque a gente faz sem a intenção de retorno, eu me emocionei muito com toda a ajuda. Houve muitos gestos e palavras de afeto e carinho.

Fotos salvas
As fotos antigas com meus pais, filhos, do meu noivado e casamento foram salvas. Minha filha conseguiu pegá-las quando já saíamos de casa com a água subindo e tomando conta de tudo.


Falha no apoio psicológico
Passado um ano ainda há coisas para organizar dentro de casa. E além das perdas materiais a enchente afetou muito a nossa saúde emocional. A cada chuva vem o medo de acontecer tudo novamente. O governo municipal pouco fez além de dar uma cesta básica e de limpeza e um auxílio financeiro para alguns. Esse ano a associação dos moradores do bairro reuniu-se duas vezes com a prefeitura para tratar de ações contra possíveis novas cheias, mas nada de concreto avançou. Mas especialmente não houve o apoio psicológico, emocional que a gente precisava, que talvez fosse mais urgente do que a própria ajuda material. Naquele momento a gente precisava de um abraço que salvaria muito mais do que uma cesta básica. A gente precisava de um carinho, de uma palavra amiga, de uma palavra de conforto.
Auxiliando a comunidade
Moro desde 1988 no bairro Novo Esteio, estava grávida do Rafael quando vim para cá. São 37 anos de boa convivência com os vizinhos, fizemos amizades e sempre tivemos em casa o princípio da solidariedade.
Durante o período da enchente a Associação do Hip Hop fez uma parceria com a empresa Seara. Eles recebiam semanalmente frango que doavam para instituições que faziam a distribuição de marmitas aos mais necessitados. Vinham pegar as aves entidades de outros bairros de Esteio além de Porto Alegre, Novo Hamburgo, São Leopoldo, Sapucaia, Guaíba. A associação designava quem vinha e eu distribuía o frango. Chegou uma época que pararam de fazer marmita, mas a Seara continuou mandando frango. Então eu fiquei responsável de distribuir esses frangos para os moradores aqui do bairro.
Eu ligava para as pessoas, ia nas casas avisar que determinado dia teria frango. Fiz apontamentos para quem distribuía, tinha tudo anotado e mandava para a associação ter esse controle. Semanalmente distribuíamos frango para cerca de cem famílias. Então, mesmo no período da enchente a gente não deixou de ajudar o próximo.

Livros
Há poucos dias fiquei bastante triste e chorei muito ao me lembrar dos meus livros perdidos na enchente. Eu tinha dois livros de cabeceira, um era o Apontamentos para o Futuro: Palavras de Sabedoria, do Nelson Mandela. Um dia comprarei outro exemplar, mas não é a mesma coisa, porque aquele livro tinha o valor sentimental, lembranças que me acompanhavam de suas leituras. O outro era o Eu passarinho, do Mario Quintana, gostava de seus poemas. O livro é como um conselheiro, um querido amigo e companheiro. Tive centenas de livros, a maioria doei, na enchente tinha uns 30 especiais, como o Quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus, e o Teoria prática do meu filho Rafa.
